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O João Gonçalves – um amigo que, apesar das muitas discordâncias, muito prezo, não me acompanha nesta conversa sobre o «ónus da prova» – ademanes "liberais", como diz. Desde tempos remotos, por via da reflexão filosófica, se atribuiu a quem produz uma afirmação a prova da sua veracidade, desconsiderando-se até à produção da prova a afirmação produzida. Também, desde esses tempos remotos, o Direito Penal assimilou este princípio filosófico. Daí que o ónus da prova caiba a quem produz uma afirmação – a quem acusa – e que se presuma a inocência de quem é acusado até que a prova se produza. Este princípio, primeiro filosófico, sublinha-se, e só depois jurídico, é uma defesa do cidadão contra a prepotência do Estado. Sempre que este princípio foi violado, sempre que se inverteu o ónus da prova, desde o processo da Inquisição contra Galileu ou do Estado soviético contra Bucarine, como meros exemplos, a humanidade regrediu: os cidadãos ficaram, impotentes, nas mãos do Estado. O Estado é um ente colectivo abstracto (que no concreto é dirigido por indivíduos) que devia estar ao serviço dos indivíduos que compõem uma determinada comunidade mas, na realidade, se comporta como um inimigo da soma dos indivíduos que lhe dão razão de existência. Por isso, o combate contra a prepotência do Estado sobre o indivíduo é o principal combate pela democracia. Posto isto, digo que o enriquecimento ilícito deve ser criminalizado, mas tal não exige a inversão do ónus da prova. Circunstância nenhuma justifica a inversão do ónus da prova. Cabe a quem acusa provar que o enriquecimento é ilícito. Mais importante do que uma mala cheia de notas em cima de uma secretária são os direitos de milhões de cidadãos que ficariam à mercê de um qualquer mentecapto do «ministério público». Ainda por cima num país em que a inveja é idiossincrática (o Pedro Correia não gosta desta palavra). Na defesa de um regime democrático procuro não me perder nas circunstâncias do momento, não me perder na árvore, mas ver a floresta.